Bastou um chute cruzado da ponta direita e o sonho do Brasil de ser campeão mundial no Maracanã em 1950 acabou. O vilão eleito por torcedores e parte da imprensa diante do revés para o Uruguai, de virada, foi Moacyr Barbosa, goleiro que defendia a seleção brasileira. Ele faleceu cinco décadas após o episódio, mas diante da condenação pública, dizia que apesar de a pena máxima no Brasil ser de 30 anos, pagou “a vida inteira por causa de uma derrota”.
Hoje o nome que seria dado para o tratamento dado ao jogador seria “cancelamento”, pois, diferente do Código Penal, a coerção social — para utilizar o termo do sociólogo francês Émile Durkheim — não possui prescrição ou data de validade para gerar uma sanção, ainda que do ponto de vista subjetivo de quem compõe a sociedade.
É exatamente isso que a cultura do cancelamento impõe: a percepção de que uma conduta foi equivocada pode impedir a continuidade da vida de um indivíduo. E sim, uma mera percepção basta, pois, no tribunal do cancelamento não há devido processo legal, distanciamento do fato para julgamento e ampla defesa. Muitos jornalistas, como Pedro Couto, e o ex-técnico Mário Jorge Lobo Zagallo, que estava em campo naquele dia, fundamentam taticamente que Barbosa foi injustiçado, pois não cometeu falha alguma no lance.
Contudo, infelizmente o sofrimento histórico de Barbosa é um dos inúmeros exemplos que provam que casos de cancelamento não possuem prazo determinado para absolvição.
Um caso recente foi o do técnico Antonio Carlos Zago, recém anunciado técnico do Coritiba em abril de 2023. Ele foi cancelado nas redes sociais e alvo de posicionamento contrário de torcidas organizadas do clube por um episódio ocorrido 17 anos antes — este sim, muito grave. Quando jogador do Juventude, em 2006, foi expulso ao acertar uma cotovelada no volante Jeovânio, do Grêmio. No afã do jogo, apontou para a cor do próprio braço na discussão com o rival — um gesto reconhecidamente racista. O ato não ficou impune: o jogador foi punido pela agressão com base no regramento desportivo à época, com suspensão de 120 dias e mais quatro jogos.
Ouvido anos após o episódio, a vítima, Jeovânio, perdoou publicamente Antônio Carlos. Zago declarou por diversas vezes que o episódio fora “o maior arrependimento da vida”. Mas nada disso basta para o tribunal do cancelamento: para parcela do público geral e para stakeholders importantes do Coritiba, como torcida organizada, imprensa e patrocinadores, o homem de 53 anos não deveria ser contratado. Simples assim.
O que querem os canceladores após o cometimento de um erro? O que o cancelado deveria fazer de sua vida? Não trabalhar em nenhum lugar? Sua família ficar sem sustento? Transformar uma condenação pública em sentença penal? Em outras palavras, até quando um erro pode impedir a vida de alguém? Os canceladores não parecem ter essas respostas.
Olhando em um aspecto sociológico, os cancelamentos ocorrem quando há registros e a divulgação destes para o grande público. Desde que condutas percebidas como equivocadas fiquem reservadas na vida privada, não há punições sociais.
Contudo, condutas equivocadas e erros são cometidos por todos os indivíduos a todo o tempo. Se não hoje, no passado. Gestos ofensivos em momentos nervosos, falar o que não deveria e micro agressões em geral fazem parte da vida e do aprendizado pessoal.
Mesmo condutas reprováveis socialmente e tidas como mais graves, a ponto de se tornarem assunto de Poder de Polícia do Estado, quando julgadas e sentenciadas possuem uma Lei de Execução Penal para as penas serem cumpridas. A detenção ou reclusão servem para retirada do indivíduo de circulação social para proteger a sociedade, mas também possuem função pedagógica, qual seja a de ressocialização daquele indivíduo. Para tudo isso há uma pena objetivamente definida pela legislação, que em sua origem foi feita a partir de diversas sessões legislativas, audiências públicas, deliberações e votações dos chamados representantes do povo.
Mas nada disso ocorre na cultura do cancelamento: basta haver o registro de uma conduta em determinado contexto que seja percebida subjetivamente como socialmente inadequada para um indivíduo, de imediato ou futuramente, quando houver eventual divulgação, pagar por aquele erro para sempre. Como a sociedade muda com o tempo, o peso de determinadas condutas que já eram reprováveis pode aumentar na percepção social com o tempo. Nesse sentido, um pequeno equívoco quando revelado anos mais tarde pode se tornar um grande erro. E nesse caso não há ressocialização, não há punição proporcional e nem alguma forma de correção.
Em tempos de Big Brother, passa a ser possível que a qualquer momento um indivíduo tenha divulgado registros do passado que revelem condutas que, retiradas ou não de contexto, destruam sua vida para sempre. O mero risco disso ocorrer já impõe um peso psicológico para a vida mundana que não é razoável.
Há ainda o caso de condutas que em determinado período eram consideradas socialmente aceitas e mudam com o passar do tempo.
Jean-Jacques Rousseau é conhecido por suas contribuições para o pensamento político e filosófico e pela defesa de ideias sobre igualdade e liberdade, que tiveram uma influência significativa na Revolução Francesa e no desenvolvimento dos direitos humanos. Contudo, Rousseau possuía uma visão contraditória quando se tratava de escravidão, contribuindo com o trabalho de aristocratas que tinham escravos E se referindo a eles em suas cartas e diários como inferiores e primitivos, jamais defendendo a abolição ou realizando um esforço significativo para confrontar ou questionar a instituição da escravidão. Deveríamos parar de ler e recomendar a leitura de “O Contrato Social”?
René Descartes também refletiu valores de sua época. Conhecido como o pai da filosofia moderna e contribuições para o desenvolvimento da ciência, afirmou em sua obra”As Paixões da Alma”, que as mulheres eram naturalmente inferiores aos homens em termos de capacidades intelectuais e que elas deveriam se dedicar principalmente a tarefas domésticas e à criação dos filhos. Ele acreditava que a mente das mulheres era menos racional e mais propensa a ser governada pelas emoções. Essas visões naturalmente contribuíram para a perpetuação de estereótipos de gênero e para a marginalização das mulheres na sociedade. Deveríamos apagar da história o impacto e as interpretações decorrentes de “Discurso sobre o Método”?
Albert Einstein trouxe contribuições revolucionárias para a física, especialmente pela teoria da relatividade, alterando a forma como a humanidade enxerga diversos campos teóricos. Contudo, em correspondências pessoais, expressou pontos de vista homofóbicos e preconceituosos em relação à sexualidade, utilizando termos pejorativos e ofensivos para se referir a homens gays, questionando a moralidade da homossexualidade, a associando como um desvio ou doença. Deveríamos queimar os livros de física moderna?
Winston Churchill foi um estadista britânico e um dos líderes políticos mais proeminentes do século XX. Como Primeiro Ministro do Reino Unido durante a Segunda Guerra Mundial é amplamente creditado por sua liderança na resistência britânica contra a Alemanha nazista. No entanto, tinha visões e políticas que refletiam o pensamento colonialista da época, acreditando na superioridade do Império Britânico e na missão civilizadora dos britânicos, o que incluía a promoção da expansão do império, incluindo a manutenção do controle colonial sobre regiões como Índia, África e Oriente Médio. Essas políticas não estavam alinhadas com os princípios de autodeterminação e igualdade, teorias que se desenvolveram e se tornaram consenso no Ocidente posteriormente. Deveríamos equiparar Churchill a Adolf Hitler?
Exemplos históricos não faltam. É natural indivíduos refletirem comportamentos e ideias de sua época, e eventuais falhas não deveriam apagar todas as demais contribuições daqueles indivíduos em suas vidas pessoais e profissionais. Falta essa reflexão aos canceladores de plantão.
A condenação pública de Barbosa em 1950 deveria ser um alerta a respeito de um caminho perigoso que não deveríamos seguir enquanto sociedade, não um prelúdio do que estaria por vir com a cultura do cancelamento. Ao não percebermos este aviso, colocamos a liberdade em risco.