Para melhor compreender qualquer doutrina é fundamental entender os princípios que a norteiam, palavra que vem do latim principium, que significa primo (primeiro). O princeps é aquilo que toma o primeiro lugar, a primeira parte, o primeiro posto; é o príncipe, o chefe, o “cabeça”, o soldado da linha de frente. O princípio, assim, é um início, um começo, os fundamentos basilares. Compreendendo bem os princípios da doutrina, diante de um caso concreto, o indivíduo saberá qual postura adequada perante o liberalismo clássico. Os princípios nos auxiliam a formatar as instituições vigentes, alterando-as ou limitando suas atuações, pois o liberalismo é uma convicção evolucionária e não revolucionária.
Assim, este será o primeiro de dois textos que procuram listar e explicar os princípios do liberalismo clássico, baseados nas lições de Nigel Ashford, professor da George Mason University.
1. Primazia da Liberdade
O primeiro princípio diz respeito ao valor central que a liberdade possui para o liberalismo. Cada indivíduo possui seus conjuntos de crenças e valores, e o governo não deve diminuir a liberdade do indivíduo. No entendimento do filósofo Karl Popper, o Estado é um perigo constante e, sob este aspecto, um mal, ainda que necessário, com suas competências de poder não devendo ser ampliadas além do necessário.
A posição de um governo, portanto, é tão somente evitar agressão a terceiros por meio de um aparato de segurança e justiça. Segundo essa perspectiva, reconhece-se apenas os denominados direitos fundamentais de primeira dimensão, que remontam aos direitos individuais, originados no iluminismo racionalista. Eles estão relacionados com as chamadas prestações negativas do Estado, limitando suas ações, na medida em que o liberalismo exige menor presença deste na esfera da liberdade das pessoas, a fim de, especialmente, favorecer a economia privada, o regime da propriedade e os direitos individuais.
2. Individualismo
O individualismo deve sempre prevalecer em relação ao coletivismo. Assim, jamais deve-se sacrificar o indivíduo ou seu patrimônio em prol do “bem comum”, sendo este um termo subjetivo que, em última análise, pode vir a justificar qualquer coisa. O apego à coletividade é uma característica típica de regimes intervencionistas. O fascismo e o comunismo consideram que os indivíduos simplesmente não possuem qualquer relevância.
Ernesto Che Guevara, por exemplo, em sua obra Textos Políticos, defendia que “para construir o comunismo, tem de se fazer o homem novo”. Para o argentino, o indivíduo era um fim em si mesmo, apenas uma ferramenta para a revolução. Assim, matar ou sacrificar pessoas não apenas era racional, como correto. Conforme revelam seus diários e declarações, ele tinha uma crença de que a natureza humana é maleável, podendo ser ensinados diferentes comportamentos, bastando para tanto educá-la para o espírito revolucionário.
3. Ceticismo
A ação humana é o comportamento ou conduta deliberada com o fim específico de levar o indivíduo de uma situação de maior desconforto para uma de menor. Já o intervencionismo é a tentativa de condução da ação humana para fins determinados de forma centralmente planejada. Os liberais clássicos entendem que o indivíduo sabe o que é melhor para si próprio que um burocrata em Brasília, pois conhece melhor a sua realidade.
Em linhas gerais, os liberais são bastante céticos em relação ao intervencionismo por considerá-lo ineficiente. Como explica Adriano Gianturco, a intervenção se dá por quem ocupa cargos eletivos, e há interesses dispersos entre eles e a população. Logo, os decisores políticos possuem interesses não necessariamente alinhados com os interesses da população. Há problemas de cálculo econômico, em que uma autoridade central possui dificuldades alocativas, como estabelecer o que produzir, a qual custo, quantidade e preço, e a dispersão do conhecimento, em que os planejadores possuem informações limitadas para tomar decisões para os outros.
Dessa forma, liberais são céticos com qualquer tipo de intervencionismo.
4. Império da Lei
Os princípios devem ser usados para avaliarmos o que o governo faz, como leis aprovadas e suas ações.
Liberais entendem que certos princípios devem ser adotados como forma universal, como a igualdade formal. Isso significa que pessoas devem ser tratadas da mesma forma, independentemente de seu gênero, opção sexual, religiosa ou ideológica. É a tão famosa igualdade perante a lei. Dessa forma, devem se opor a leis que tratem indivíduos de forma diferente.
5. Cooperação social
Há organizações voluntárias que existem entre o indivíduo e o Estado. Liberais clássicos acreditam que a maior parte dos problemas sociais podem ser resolvidos com maior eficiência por intermédio de organizações voluntárias, como a família, a igreja e instituições de caridade, por exemplo.
Quando optamos por ajudar outros indivíduos por meio da sociedade civil, a maioria das pessoas escolhe uma organização próxima de si, com propósitos e valores semelhantes aos seus. Assim, pode fiscalizá-los, supervisionar o que está sendo feito com suas contribuições, o que não ocorre da mesma forma quando realizado por um programa social estatal. Ademais, o auxílio não necessariamente precisa ser monetário, mas trabalho voluntário também.
Com o Estado de bem-estar social, houve uma terceirização da obrigação moral dos indivíduos em ajudar os próximos necessitados para o Estado. Há uma forte evidência empírica de que indivíduos de países com maiores liberdades econômicas são mais solidários.
6. Ordem Espontânea
A ordem trata-se da regularidade e previsibilidade no mundo. A ação humana requer uma avaliação dos custos de oportunidade e consequências das decisões tomadas pelos indivíduos.
Há correntes de pensamento, como o positivismo – inspiração para os dizeres “Ordem e Progresso” na bandeira brasileira –, que supõem a necessidade de uma instituição para manipular e organizar as coisas e, assim, haver ordem.
Liberais clássicos, no entanto, não acreditam nisso: a ordem pode surgir espontaneamente. Indivíduos, por meio de interações voluntárias, criam as regras pelas quais as pessoas acabam se organizando. Para exemplificar, Friedrich Hayek cita o exemplo da língua, que surgiu por intermédio da comunicação entre as pessoas e que, ainda assim, possui certas regras. Nós não precisamos de alguém que planeje nossas vidas ou de uma autoridade central.
7. Livre mercado
O jurista italiano Bruno Leoni distingue dois tipos de relações humanas, as econômicas e as políticas. A primeira trata-se de todas as relações voluntárias e livres, independentemente de se usar dinheiro ou não. Por serem voluntárias, os indivíduos apenas as cumprem por considerarem que elas gerarão maior conforto e satisfação que caso se procedesse de outra forma, afinal são “trocas produtivas”. Do contrário, as relações políticas são hegemônicas e fundadas na coerção, sendo consideradas “relações desprodutivas”.
Dessa forma, as relações devem ser feitas voluntariamente por indivíduos. O governo não deve determinar onde as pessoas devem trabalhar, como poupar, o que construir e o que produzir. Tudo isso deve ser entregue à interação voluntária entre pessoas. A propriedade privada é uma necessidade, e os recursos são escassos, daí a ocorrência de conflitos de interesses entre os indivíduos.
Para os liberais clássicos, é neste momento de conflitos que o Estado deve ser provocado para buscar a resolução da lide de forma pacífica por meio de seu Poder Judiciário, detentor da capacidade jurisdicional (possibilidade de decidir imperativamente e impor decisões, conforme a legislação). Para tanto, o Poder Judiciário deve estar sempre pronto e capacitado para resolver as disputas contratuais de forma rápida, informada, imparcial e previsível, atendo-se aos termos originais do contrato e ao texto da lei.
Caso assim não fosse, não haveria o porquê da celebração de contratos, por exemplo, pelos agentes no mercado. Dessa forma, caso não haja a garantia de que o desrespeito aos contratos será punido com celeridade e correção, as relações de trabalho, os negócios entre empresas, as operações financeiras e muitas outras transações econômicas ficarão mais incertas e caras, podendo mesmo se tornar inviáveis.
Salienta-se que deixar o livre mercado agir em vez do governo aumentou a prosperidade, diminuiu a pobreza, criou mais empregos e bens que as pessoas querem comprar.
8. Tolerância
A tolerância é a crença de que uma pessoa não deve interferir em coisas de que ela discorda. Tolerância não significa permitir que as pessoas façam algo porque você concorda ou acha bom, trata-se de uma questão de certos princípios morais. A tolerância envolve, diante de coisas de que você discorda, abster-se de tentar utilizar a coerção institucional do Estado para impor o seu mundo ideal. As pessoas devem ser livres para dizer coisas das quais discordamos. Nós devemos tolerar mesmo discordando delas.
Como dizia o político norte-americano Robert Gree Ingersoll, “tolerância é dar aos outros os mesmos direitos que você reivindica para si mesmo”.
9. Paz
A paz é um estado em que se pode viver a vida sem violência ou guerra. Isso é adquirido ao não intervir nos assuntos de outros países. Em outras palavras, os liberais clássicos defendem uma política externa não intervencionista.
A nossa interação com outras nações deve ser baseada no que é denominado de as quatro liberdades: deve haver livre circulação de capital, trabalho, pessoas e serviços. Ashford acrescenta uma quinta liberdade: a livre circulação de ideias.
Em sua aclamada obra “Ação Humana”, Ludwig von Mises defende que o laissez-faire elimina as causas dos conflitos internacionais ao restringir a interferência do governo na atividade econômica. O austríaco argumenta que, em regime de livre mercado, em que há liberdade de circulação tanto de mercadorias quanto de pessoas, ninguém se preocupará com o tamanho do território de seu país. Contudo, em meio a um ambiente institucional de barreiras alfandegárias e migratórias – comumente adotado por governantes nacionalistas –, passa-se a haver interesse substancial em expansão territorial, pois isso passa a simbolizar uma melhoria material e de bem-estar de seu país.
Dessa forma, a proposição de Mises para preencher o princípio da paz é relativamente simples: eliminar barreiras tarifárias e migratórias. Para alcançar a paz e a prosperidade é preciso haver um livre mercado de fato.
Há evidências empíricas que demonstram a correlação entre comércio e paz, desenvolvida por Thomas Friedman, a Teoria dos Arcos Dourados. O liberalismo clássico acredita que, se nós tivéssemos um mundo que abraçasse essa livre circulação, teríamos um mundo baseado na paz.
10. Poder limitado ao Estado
O último princípio do liberalismo clássico é a delimitação do poder do Estado. Há poucas coisas que o governo deveria fazer.
Os trabalhos do Nobel de Ciências Econômicas de 1986, James M. Buchanan, enfatizaram o papel das constituições como meios pelos quais as pessoas podem se proteger de abusos presentes no Estado, como a exploração de grupos de interesse, pelos nossos legisladores ou pela burocracia.
O objetivo do Estado, por conseguinte, deve ser apenas o de proteger a vida, liberdade e propriedade. Qualquer coisa além disso não é justificável num governo estritamente limitado.