A liberdade de expressão é um direito constitucional no Brasil, mas não é absoluta. Há diversas organizações internacionais que manifestam preocupação com as exceções possibilitadas pela Constituição de 1988.
Relatórios como da Freedom House e da Artigo 19 apontam que a liberdade de expressão no país é ameaçada tanto no espaço público quanto no ambiente online. Neste sentido, criticam o fato de calúnia, difamação e injúria serem criminalizadas, porque “crimes contra a honra” fomentam a prática do ativismo judicia. Assim, declarações, matérias jornalísticas e protestos são censurados.
O Brasil não pontua bem também no Ranking de Liberdade de Imprensa, divulgado pelos Repórteres Sem Fronteiras. Em 2020, o Brasil apareceu apenas na 107º posição, o que evidencia as dificuldades da livre expressão no país.
Segundo o Freedom on the Net 2019, entre 65 países o Brasil é o terceiro que mais censura conteúdos na web. Além disso, há sete anos, o Relatório da Sociedade Interamericana de Imprensa apontou também preocupação com “a recorrência de decisões judiciais proibindo previamente a divulgação de informações pelos meios de comunicação”.
Nesse sentido, este texto reúne 20 casos de censuras praticadas no Brasil neste século, em especial a partir de decisões do Judiciário.
1. Censura na Contigo! por entrevista sobre confecção de bolsas
Por meio de medida cautelar expedida pelo juiz Antônio Dias Cruz Carneiro, a revista Contigo!, da editora Abril, teve uma de suas edições censuradas em 2004. A publicação, que foi impedida a pedido do vice-presidente da RedeTV, trazia uma entrevista com a então esposa do empresário sobre confecção de bolsas. Mas, segundo o jornalista, a conversa teria tomado “outro rumo”.
Assim, os exemplares chegaram às bancas com uma tarja preta na capa, duas páginas com fundo preto e um aviso no qual constava “reportagem proibida”. O diretor de redação da revista, Edson Rossi, manifestou-se à época dizendo “Um juiz que não leu a matéria decidiu que ela não poderia sair. Isto é censura prévia”.
2. Decisão liminar impede veiculação de reportagem com filho do presidente do STJ
Em 2004, Erick Travassos Vidigal, que era filho de Edson Vidigal, então presidente do STJ, ajuizou ação que proibia a divulgação de qualquer notícia que direta ou indiretamente trouxesse informações sobre processos envolvendo seu nome. A Folha teve de retirar 136 mil exemplares de circulação por ter uma reportagem que citava Vidigal.
Na época, Erick Vidigal estava processando o jornalista Josias de Souza, colunista da Folha, que havia escrito outra reportagem que mencionava seu nome. Na petição que encaminhou ao juiz Fischer Dias, ele alegou que o jornal divulgaria documentos constantes sobre este processo. Apesar da censura, a notícia, porém, se tratava de outra diligência que corria na Justiça federal matogrossense.
3. Justiça determina censura à biografia de Roberto Carlos
Em 2006, o cantor capixaba Roberto Carlos entrou com ação para proibir a divulgação da biografia “Roberto Carlos em Detalhes”, de Paulo César de Araújo, publicada pela editora Planeta. A censura foi obtida na Justiça, com a imediata interrupção da produção do livro e a retirada dos exemplares já distribuídos das lojas.
O caso chegou ao STF em ação movida pela Associação Nacional dos Editores de Livros. Com esta, os profissionais pediam a liberação de obras semelhantes sem autorização prévia dos biografados. Em resposta, vários artistas, como Chico Buarque e Caetano Veloso, se organizaram em grupo de oposição, apontando as consequências de tal permissão à privacidade.
Foi apenas quase uma década depois, já em 2015, que a suprema corte decidiu, que biografias não precisavam de autorização prévia.
4. Juiz proíbe venda de biografia sobre Guimarães Rosa
Em 2008, o juiz Marcelo de Almeida retirou uma biografia a respeito de Guimarães Rosa das livrarias. O argumento foi que a venda causaria “lesão aos direitos da filha” de Guimarães Rosa. Assim, como à Editora Nova Fronteira, que publicou diversas obras do escritor.
Segundo o magistrado, havia informações incorretas no livro, mesmo sem qualquer perícia realizada.
À época, o diretor executivo da editora LGE, Antonio Carlos Navarro, afirmou que a decisão inibia a liberdade de expressão, porque não havia nem sequer “qualquer ofensa à honra do autor presente no conteúdo”.
5. Justiça proíbe livro sobre a morte de Isabella Nardoni
Em 2019, o Superior Tribunal de Justiça manteve decisão de 2010, que proibiu a publicação do livro “A Condenação do Casal Nardoni — Erros e Contradições Periciais”, escrito pelo perito George Sanguinetti. Além disso, ele foi condenado a pagar R$ 20 mil de indenização por danos morais à mãe de Isabella, de quem partiu o pedido que iniciou a ação.
Sanguinetti foi contratado pelos réus do crime e realizou uma perícia paralela do caso. A obra levantou dúvidas a respeito do assassinato da menina pelo pai e pela madrasta, mas sim por uma terceira pessoa, mas foi censurada. O detalhe: o caso ainda não tinha sido julgado pelo Tribunal do Júri, o que ocorreria apenas quatro meses depois.
6. Sarney censura Estadão de escrever sobre Operação Boi Barrica
Em julho de 2009, o jornal Estadão foi proibido de fazer matérias a respeito de um escândalo de corrupção que envolvia o filho do então presidente do Senado, José Sarney.
Tratava-se da Operação Boi Barrica, que foram censuradas por mais de três mil dias. A decisão judicial foi tomada pelo desembargador Dácio Vieira, do TJDF, proibindo a veiculação de quaisquer informações sobre Fernando Sarney pelo veículo.
Em sua defesa, os advogados do empresário afirmaram que o Estadão praticava crime ao publicar trechos das conversas telefônicas gravadas na Operação e alegaram que a divulgação de dados das investigações feria a honra da família.
Por quase uma década o jornal recorreu na justiça, até a última instância. Em 2018 o ministro Ricardo Lewandowski derrubou a censura, mas Sarney já havia se afastado da carreira política desde 2014. Isto é, as matérias acerca do assunto já não representavam risco político considerável ao ex-presidente.
7. Justiça proíbe publicação do livro Lampião, O Mata Sete
Por dois anos, uma obra a respeito da vida de Virgulino Ferreira, o famoso cangaceiro nordestino conhecido como Lampião, foi proibida de ser publicada. Em sua narrativa, havia evidências de que ele seria gay e de que sua esposa, Maria Bonita, cometeu adultério.
A ação na Justiça foi movida por Vera Ferreira, neta de Lampião. Ela conseguiu que o juiz Aldo de Albuquerque Mello desse parecer positivo à censura da liberdade de expressão do autor.
Por fim, a justificativa do magistrado foi de que “para provar a sua tese de que Lampião era um homem covarde e violento, não precisa o requerido imputar ao mesmo a conduta homossexual”.
8. Juiz proíbe livro sobre sindicalista amigo de Lula
A pedido da filha de Wilson Fernando da Silva, o “Bolinha”, falecido em 2008, o juiz Mário Gaiara Neto proibiu a publicação do livro “Companheiros – A Hora e a Vez dos Metalúrgicos de Sorocaba”. A decisão teve como base a alegação de que este feria a intimidade e a memória do amigo de Lula.
Outra justificativa foi de que, a divulgação tanto do conteúdo escrito quanto as fotos de arquivo pessoal não foi autorizada pela família.
Assim, o lançamento foi suspenso após o juiz fixar multa de mil reais por exemplar vendido ou doado. Bem como, de R$ 10 mil em caso de noite de autógrafos, divulgação ou ato semelhante.
Além do autor do livro, que narra 40 anos do sindicalismo na cidade – com destaque à participação de Lula no processo que levou seu ex-colega à presidência do sindicato sorocabano – a ação também envolveu o Sindicato, que patrocinou a obra, e a editora.
9. Vídeo anti-Islã fora do ar
Em 2012, o juiz Gilson Delgado, da 25ª Vara Cível de São Paulo, proibiu a veiculação do filme “Inocência dos Muçulmanos” no YouTube. O conteúdo que continha ofensas a Maomé foi recebido pela UNI (União Nacional de Entidades Islâmicas) como ataque à liberdade de religião, que apelou à Justiça para que a Google Brasil, proprietária da plataforma, fosse obrigada a retirar o vídeo do ar.
Segundo o juiz, o caso gerava conflito entre a liberdade de expressão e de religião – ambos preceitos da Constituição Federal – porém, optou por conceder privilégio à entidade religiosa. A decisão ficou definida como “proibição de divulgação de material ilegal”, cuja infração acarretaria o pagamento de multas diárias no valor de R$10 mil.
10. É proibido citar o nome de um deputado
Um caso de concessão de guarda, com indícios de favorecimento legal a um determinado casal – relatados pela promotora da Infância e da Adolescência de Olinda – também já teve sua publicação censurada. Segundo ela, a interferência no processo teria acontecido a pedido de Guilherme Uchoa, então presidente da Assembleia Legislativa de Pernambuco.
Assim, por meio de uma liminar, foi determinado pelo magistrado plantonista do TJPE, Sebastião de Siqueira que o nome do político não poderia constar em reportagens de dois dos maiores veículos do estado – Jornal do Comércio e Diário de Pernambuco – sobre este assunto.
Também foi fixada a multa no valor de R$ 50 mil por cada ato de descumprimento à decisão. No pedido, Uchoa argumentou que não há comprovação de seu envolvimento e que a veiculação de seu nome causa danos políticos e pessoais.
11. É proibido divulgar salário de servidor público
Em 2013, com um mandado de segurança coletivo, o Sindicato dos Servidores da Assembleia Legislativa de Goiás conseguiu impedir a divulgação da remuneração de subsídios de todo pessoal do serviço público no site da organização. A iniciativa, porém, é garantida pela lei de acesso à informação.
A determinação veio do juiz da Fazenda Pública Estadual, Ari Ferreira de Queiroz, que aceitou a sustentação de que a lei feriria o direito fundamental à vida privada.
Para tanto, o magistrado recorreu ao art.84, VI, da CF/88, alegando que “o presidente da república não pode estabelecer normas gerais criadoras de direitos ou obrigações, por ser função do Poder Legislativo”. Segundo ele, tal conduta transgride o princípio constitucional da separação dos poderes.
12. É proibido falar sobre a investigação a um desembargador
Há sete anos, o jornal Gazeta do Povo foi proibido de publicar informações sobre investigações abertas pela CNJ contra então presidente do Tribunal de Justiça do Paraná, Clayton Camargo.
À época, ele era suspeito de uma venda de sentença e de usar sua influência para favorecer a candidatura de seu filho, o deputado estadual Fábio Camargo (PTB), à vaga de conselheiro do Tribunal de Contas do estado.
A censura prévia foi feita por meio de uma liminar expedida pelo juiz Benjamin Acácio, que justificou sua decisão apontando o caráter “degradante e pessoalizado” das reportagens, “transcendendo o dever informativo”, cujo respaldo na liberdade de imprensa, de acordo com ele, “é instrumento por vezes leviano de se atingir a pessoa humana”. O desembargador pediu ainda que o conteúdo sobre o assunto fosse retirado do site do jornal.
13. É proibido falar que saiu com Romário
Com respaldo da Justiça de Brasília, o então deputado federal Romário conseguiu proibir Thalita Zampirolli de falar publicamente sobre um suposto relacionamento amoroso que teria mantido com o ex-jogador. A decisão também abrangia a de eventualmente exibir fotos e vídeos dos dois juntos, caso este material exista.
Meses antes, o deputado já tinha tentado obrigar o fotógrafo do jornal carioca “Extra” a apagar fotos que registravam os dois saindo de uma balada no Rio de Janeiro de mãos dadas.
A decisão teve caráter provisório, até que a modelo apresentasse argumentação e o mérito do processo fosse julgado. Além da proibição, Romário também exigiu o pagamento de uma indenização por danos morais no valor de R$ 100 mil.
14. TSE censura capa de Veja sobre corrupção do PT
Em outubro de 2014, na sexta-feira anterior às eleições presidenciais, o Tribunal Superior Eleitoral censurou a revista Veja. O veículo também foi proibido de veicular publicidade paga em rádio, TV, outdoor e internet sobre sua última edição, que trazia uma denúncia contra Lula e Dilma em sua capa.
A matéria era baseada em delação do doleiro Alberto Youssef afirmava que os petistas “sabiam de tudo” a respeito do esquema de corrupção da Petrobras.
De acordo com a defesa, a revista não tinha provas disso — a delação viria a público apenas em 2015. Além disso, o ministro Admar Gonzaga sustentou a decisão afirmando: “os contornos de propaganda eleitoral, a meu ver, atraem a incidência da legislação eleitoral, por consubstanciar interferência grave em detrimento de uma das candidaturas”.
15. Justiça proíbe circulação de revista que relaciona Cid Gomes ao caso Petrobras
Também há seis anos, a juíza Maria Marleide exigiu o recolhimento de uma edição da revista IstoÉ das bancas. A decisão aconteceu a pedido do então governador do Ceará, Cid Gomes, cujo nome constava na delação do ex-diretor da Petrobras, Paulo Roberto Costa. A edição censurada veiculava uma reportagem sobre o caso.
Em sua liminar, a magistrada afirmou entender o potencial de a “veiculação de seu nome com os fatos ligados à operação Lava Jato lhe causar (ao governador) dano irreparável ou de difícil reparação”.
Segundo Gomes, as informações prestadas à Polícia Federal eram falsas e, portanto, uma ação por “calúnia, difamação e dano moral” foi movida contra o veículo. Por fim, a matéria também foi retirada do site da revista.
16. Justiça censura reportagem da Folha sobre hacker que chantageou Marcela Temer
Em 2016, a Folha foi proibida de publicar reportagem sobre um caso de tentativa de extorsão que envolvia Marcela Temer, então vice-primeira-dama. Na época, o celular dela foi hackeado, sendo então ameaçada pelo criminoso que afirmou poder jogar o nome de Michel Temer “na lama”, com uma mensagem enviada por ela no WhatsApp.
Porém, estas informações foram censuradas por meio de uma liminar expedida pelo juiz Hilmar Castelo Branco. Além de obrigar o veículo a retirar o conteúdo do ar, este também foi impedido de divulgar novas notícias sobre o assunto.
Por fim, a reportagem também destacava o papel de Alexandre de Moraes na criação da força-tarefa que prendeu o hacker. Mais tarde, o magistrado foi indicado à vaga de Teori Zavascki no Supremo Tribunal Federal (STF).
17. Juiz proíbe publicação de depoimento referente ao Escândalo do Maquinário
Casos explícitos de corrupção também não passam ao largo. Há dois anos, o governo do Mato Grosso estava sob investigação instaurada para apurar suposto superfaturamento na aquisição de caminhões e máquinas pesadas.
O inquérito, que ficou conhecido como Escândalo do Maquinário, contava com depoimentos prestados pelo empresário Pérsio Briante ao Ministério Público.
A censura à liberdade de imprensa aconteceu por ordem do juiz José Arimatéia Neves, da Vara de Crimes Contra a Ordem Pública. No documento oficial, o magistrado proibiu a publicação de qualquer depoimento feito por Briante e ainda advertia jornalistas quanto ao descumprimento deste.
18. STF impõe censura ao Antagonista e Crusoé
Em 2019, o ministro do STF Alexandre de Moraes censurou reportagens do site O Antagonista e da revista digital Crusoé, que tratavam sobre outro ministro da Corte, Dias Toffoli.
Na prática, as publicações informavam que a defesa de Marcelo Odebrecht juntou a um dos processos no qual é réu um documento que identificava Toffoli – então advogado-geral da União – como um dos personagens mencionados em e-mails.
A determinação impôs a retirada do conteúdo das respectivas plataformas, pois, de acordo com despacho de Moraes, tratava-se de um “típico exemplo de fake news” e que eles extrapolaram a liberdade de expressão. No entanto, a reportagem foi baseada em um documento que vocês podem acessar aqui.
19. Crivela consegue na Justiça censura a HQ na Bienal do Livro
A revistinha intitulada “’Vingadores, a cruzada das crianças” continha uma cena com dois personagens do gênero masculino se beijando e, por esse motivo, foi considerada pelo prefeito como “imprópria para menores”. Assim, a prefeitura do Rio de Janeiro determinou que as cópias da HQ deveriam estar lacradas para exposição no evento do ano passado.
Em resposta, uma liminar decidiu que os exemplares poderiam ser comercializados sem a advertência imposta, porém, esta foi revogada pelo presidente do TJRJ, Claudio de Mello. Após o imbróglio, o STF proibiu a censura à liberdade de expressão no evento.
20. As censuras ao comediante Léo Lins
Restrições à liberdade de expressão de forma oficial não são praticadas no Brasil apenas a partir de decisões judiciais. O show Bullying Arte do comediante carioca Léo Lins é um exemplo disso.
Ao fazer piadas com políticos locais das cidades em que se apresentará para promover seu show, foi censurado pelo Executivo delas em um quarto dos eventos entre 2016 e 2019. Inclusive, são mais de duas dezenas de casos, o que provavelmente o transforma no comediante mais censurado do Brasil.
Nesse sentido, o humorista coleciona casos de ameaças, notas de repúdio e até agressão física e, claro, a imposição de censura às vezes explícita, com documentos oficiais.
Considerações finais
A ordem dos casos listados neste texto é cronológica, e a resolução de muitos deles se deu com uma corte superior reforçando o direito constitucional à livre expressão.
Contudo, mesmo que se considere haver uma tendência de evolução jurisprudencial que, em última análise, tem resultado em uma preservação da liberdade de expressão nas cortes superiores, isso não é suficiente.
Isso ocorre porque, conforme demonstrado em diversos casos, decisões liminares em fase de primeira instância são suficientes para provocar danos à livre manifestação, à liberdade de imprensa e prejuízos econômicos.
Afinal, quando há a liberação da censura, como por exemplo no caso 6, de Sarney, não há mais interesse público pelo assunto. Isto é, a liberdade de expressão perdeu e, quem “venceu”, por fim, foram os censuradores.